O samurai não era um herói

Por Braddock, 10 Outubro, 2025
Combatives

Introdução

O samurai não foi projetado como fábula moral. Ele surgiu de uma ecologia de guerra, administração fundiária e disputa de poder. Ler o samurai como símbolo perfeito apaga o indivíduo histórico, com ego, dívida, ambição e contradições, e distorce o contexto que o produziu.

1) Bushidô, construção tardia e heterogênea

O termo bushidô ganha forma e difusão principalmente no período Edo (1603–1868), quando o Japão estava pacificado e a classe guerreira precisava de uma gramática de conduta. Não há evidência de um código único trans-histórico seguido por todos os samurais. Estudos comparativos mostram que a formulação canônica de Nitobe Inazō (1899) é em grande parte síntese idealizada posterior, não espelho fiel de textos normativos medievais e pré-modernos.

2) Fontes primárias, cartas e diários revelam o humano

Compilações de cartas dos séculos XVI e XVII, correspondência entre senhores da guerra, mestres do chá, monges zen e aristocratas, expõem tensões políticas, busca por prestígio, alianças oportunistas e preocupações materiais, muito além de qualquer serenidade idealizada.

Diários como o de Asahi Monzaemon (Genroku, séculos XVII e XVIII) registram rotina, fofocas, finanças e ambições, oferecendo um retrato de um funcionário armado do bakufu que navegava expectativas sociais e limites pessoais.

3) Violência e política, o ideal de honra em fricção

No Sengoku (séculos XV e XVI), guerra civil crônica significou lealdades fluídas, traições estratégicas e mobilidade entre clãs. O seppuku funcionou tantas vezes como instrumento político teatral quanto como devoção ética. Com a pacificação Tokugawa, muitos samurais tornaram-se burocratas, e a espada migrou de ferramenta para símbolo de status.

4) Chanoyu e wabi-sabi, a política do gosto e a estética da falha

A cerimônia do chá consolidou-se entre Muromachi e Momoyama como prática de sociabilidade, prestígio e negociação de poder. No século XVI, Sen no Rikyū formalizou o wabi-cha, preferindo utensílios simples e ambientes despojados contra ostentações.

O ideário wabi e wabi-sabi celebra austeridade, espontaneidade e aparente despretensão. Nas tigelas e utensílios, a assimetria e a cicatriz são constitutivas da beleza, não defeitos a ocultar.

5) Um ajuste de foco, imperfeição como método e não moral

Tratar o samurai como santo obscurece a documentação. As fontes indicam agentes pragmáticos, porosos à hierarquia, dívida e vaidade. O interesse aqui não é derrubar um ícone, mas reposicioná-lo no arquivo. A técnica, a disciplina e a presença nasceram da necessidade histórica, não de pureza metafísica. Ao final, a ponte com o chanoyu não é sermão, é método, reconhecer a falha, lapidar o gesto mínimo, aceitar o inacabado como parte do fazer bem-feito.

Referências

  1. Etzrodt, Christian. “Nitobe Inazō’s Bushido Science or Fiction” Electronic Journal of Contemporary Japanese Studies (2018).
  2. H-Net Review of Benesch, Oleg. Inventing the Way of the Samurai, Nationalism, Internationalism, and Bushidō in Modern Japan (2015).
  3. Pitelka, Morgan; Tanimura, Reiko; Masuda, Takashi. Letters from Japan’s Sixteenth and Seventeenth Centuries Institute of East Asian Studies, UC Berkeley (2021). (Catálogo e amostra em PDF).
  4. Roberts, Luke S. “A Transgressive Life, The Diary of a Genroku Samurai.” (estudo e ensaio, download OSU).
  5. Society for Asian Art. “Samurai Life During the Edo Period” (handout do curso e apontamentos históricos).
  6. Tokyo National Museum. “The Arts of Tea Ceremony, The Essence of Japan” (Rikyū e wabi-cha).
  7. The Metropolitan Museum of Art. “The Japanese Tea Ceremony” (wabi e a estética da austeridade).
  8. Connecticut College. “Wabi-sabi, The Art of the Imperfect in Japanese Tea Ceremony Ceramics.”
  9. Yang, J. “The Meaning and Expression of Wabi-Sabi” (PIJ, 2021, PDF).

Tags